O cisne do Tejo: considerações acerca de Até que o amor me mate, de Maria João Lopo de Carvalho

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Luiz Vaz de Camões é um poeta que sempre estará presente no próprio corpo da Língua Portuguesa e da História, não só de Portugal, embora seja ela o seu fundamento, mas de toda humanidade. Posto que sua poesia, seu projeto poético permanece pulsando no corpo e na alma, se assim pudéssemos dizer, da Língua Portuguesa.

Desse modo, Camões interessa a todos nós que falamos Português, a todos nós descendentes desse Portugal que o poeta ama e que se torna o principal fundamento de sua criação literária.

Por outro lado, talvez, hoje em menor ocorrência, porém, em passado recente, impunham, muito cedo, aos estudantes, o aprendizado da Língua Portuguesa e, por vezes, de Camões, claro que não de Camões no sentido do conhecimento de sua poesia – lírica e épica -, mas tão somente, de fragmentos de “Os Lusíadas”, e de uma forma pela qual jamais poderíamos amar a poesia de Camões, posto que os seus versos se tornavam num árduo trabalho de desmonte, não do poético, mas de uma estrutura linguística, através da, então famosa, “análise sintática”, aqui, no Brasil ou “divisão de orações”, certamente, mais comum, em Portugal, como a ela se refere Maria João Lopo de Carvalho. Nem sempre o corpo todo desmontado em partes e funções é capaz da apreensão do corpo vivo em suas funções.

Ao ler a abertura do livro de Maria João Lopo de Carvalho me surpreende achar, ali, a confissão de semelhante aversão, que, adolescente, estudante num internato em Mariana, também tive da obra e do próprio poeta por causa desses exercícios reiterados de “análise sintática”, no ensino da Língua Portuguesa, no intuito de um iniciado, de uma iniciação na estrutura da língua. As dificuldades eram muito maiores de que a capacidade de conhecimento e domínio da língua. De poesia, então, malgrado a “fala consoada” dos iniciados da minha avó, quase não restava paixão alguma que pudesse garantir o amor futuro pela poética de Camões.

Maria João Lopo de Carvalho oferece a todos nós, falantes do Português, descendentes dos portugueses, esse precioso trabalho de conhecimento, essa sua espécie de carta marítima em busca do poeta, em busca da poesia, ao contrário da análise sintática, absolutamente, prazeroso, embora não menos profundo e pormenorizado de sua rota poética que marca o mundo por sua passagem.

Oferece-nos um Camões humano, que ama, sobretudo, as mulheres, Portugal e a Língua Portuguesa, e é amado por elas, por Portugal e pela Língua Portuguesa. Essa tríplice paixão do poeta é mostrada ao leitor, através das mulheres escolhidas por Maria João Lopo de Carvalho para demonstrar as verdadeiras musas de Camões.

Um Camões contraditório: “Luiz Vaz semeia amor, desalentos e traições por todo lado”. Capaz de provocar paixões, amor, volúpia com a mesma veemência que provoca ódios, raivas. Camões – camão, “o pássaro que morre de casta paixão vendo o pecado esvoaçar-lhe pelo defronte”.

Uma biografia do poeta través da paixão dessas mulheres que o amaram e foram por ele amadas, de sua luta renhida na construção de seu poema maior e dos maiores da Língua Portuguesa – “Os Lusíadas”.

Um poema que transita o poeta por inúmeras adversidades profissionais, físicas, intelectuais, políticas e poéticas. O mar, sempre presente na Língua Portuguesa e na própria história de Portugal – “da minha língua vê-se o mar” – diz o poeta Vergilio Ferreira, é, ao mesmo tempo, o mar de águas, o mar de paixões humanas, o mar de fronteiras geográficas, intelectuais e emocionais a exigir a travessia diária por ele, sempre dessa sua tríplice paixão – as mulheres, Portugal e a Língua Portuguesa – em punho por serem salvas de todas as intempéries marítimas, do risco de todas as tormentas, do assombro de todos os monstros, do desânimo de toda fatiga.

Há uma sintonia entre Portugal, Os Lusíadas e Camões que Maria João Lopo de Carvalho consegue por aos olhos do leitor, de sua sensibilidade poética, de sua paixão, não menor, por Portugal, pela Língua Portuguesa e por Camões. Até porque paixão por Camões implica paixão por Portugal e pela Língua Portuguesa. Que sintonia é essa? O amor. O amor “até que o amor me mate”. Nele se funde, pois, a voz poética de Camões e de Maria João Lopo de Carvalho.

Minha avó Margarida – mais uma vez volto a citá-la – que não sabia ler, mal soletrava alguns versos, um dia me falou, não exatamente de Camões, posto que ela, possivelmente, não soubesse de quem se tratava, penso, mas de um verso que põe Camões nos lábios dela agora: “O amor é fogo que arde sem se ver”. Ela me iniciou na ideia de que o amor não pode gerar senão o que seja amor. Que o amor não pode gerar a morte. Portanto, que o amor não mata. Ora, o poeta insiste, ao contrário, de seu verso: “Até que o amor me mate”. Vou pela minha avó iletrada para pensar que, de fato, o amor não mata e é por essa certeza que Camões permanece, permanecerá pela sua obra, na Língua Portuguesa, que, reiteradamente, demonstra que ele está mais vivo do que nunca nela, porque o amor não o matará jamais. O amor não pode gerar senão o que seja amor.

Harold Bloom diz que a crítica literária, como ele pensa e pratica, deve ser feita com paixão. Mesmo não sendo ou até mesmo por não se constituir, de fato, esse texto numa crítica literária, propriamente dita, do livro de Maria João Lopo de Carvalho – Até que o amor me mate: as mulheres de Camões – mas de uma expressão mais emocional de paixão pelo livro que fala de paixões de Camões, de paixão por Camões, penso seja a paixão a movê-la. Quero, pois, seja a paixão a movê-la.

Assim, semelhantemente, Maria João Lopo de Carvalho, movida dessa paixão pelo poeta, lança-se ao mar num gesto poético, mas também existencial, bem ao estilo português, de sua paixão pelo mar, e vai ao encontro, à travessia pela carta marítima poética de Camões. O sentido dessa travessia é a busca “pela ilha dos amores”, pela alma, pelo que anima essa paixão, a escuta e a escrita dessa paixão. Daí o primor poético, linguístico e histórico de seu livro que nos lança senão ao mar nem sempre calmo da poesia de Luiz Vaz de Camões.

“Não sabem que é um poeta! Um poeta não pertence ao mundo das promessas, um poeta pertence à solidão e às palavras que lhe rebentam, vindas do fundo atento do coração. Pertence a uma voz que mal se ouve mas que flutua entre os anjos e que só no silêncio se pode alcançar. Os anjos? Só os poetas os ouvem, mas eu já os vi a voarem sobre o mar”.

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