O maior caçador do mundo

Em celebração dos 90 anos de meu pai – Sebastião Matildes da Silva, em gratidão à vida e à aprendizagem gratuita, renhida, por vezes, poética, por vezes, árdua da vida.

Na manhã morna de agosto, acompanho meu pai numa caçada pela capoeira dos Giardini em Urucânia.

A noite mal dormida, atribulada por tenteios de assombração pela mata, emenda-se à tormenta do caminho. Todos os meus medos de menino são sempre muito maiores do que os medos dos meninos da minha idade, como os meus sonhos. Odeio estas caçadas. Meu pai adora me levar. Castigo? Teimosia? Alguma aprendizagem que desconheço? Lá estamos nós capoeira adentro.

Tudo obedece a um ritual – ensaiado por ele? O andar leve sobre as folhas secas para não espantar os passarinhos nem os espíritos da floresta – que espíritos? – ele não responde; as borboletas coloridas ensinam de suas asas leves e transparentes este andar na ponta dos pés; a respiração contida no diafragma; as picadas de insetos (mosquito, marimbondo, formigas e outros monstros mínimos) escrevendo vergões vermelhos legíveis pelo corpo, sem abanar o chapéu, sem ais; o silêncio pela travessia das águas no ponto em que o rio amaina sua correnteza; sem conversa, sem queda, sem naufrágios ou afogamentos, ainda que emaranhado a cipós. “Há sempre pedras no fundo do leito de um rio!” – ele sabia as pedras no meio do caminho.

Nos ombros a tiracolo o embornal em brim escuro e alças compridas. A espingarda, de ouvido tratado por seu Juquinha Ferreiro, o otorrino de ouvidos de espingarda. Um apito de madeira apropriada, feito artesanalmente por ele com que imita o pio de sabiá, gavião, nhambu, bem-te-vi, rolinha, pomba-trocal, paca, jacu, seriema.

Meu pai, à frente, sumindo na mata fechada quase como uma árvore qualquer daquelas, um passarinho ou a volta de um pedaço de rio que a gente de repente nem vê por onde se escoa. Eu, pra trás, engastado em cipó e medo.

Enfim, a Cachoeira dos Anjos. A visão dela é chegar aos céus por uma destas trilhas sem perceber. Uma cura dos percalços do caminho.

Mas o braço arranhado na barba de gato sangrando misturado ao suor arde o corpo na certeza de que ainda estamos na terra.

O embornal com a munição para a espingarda, o anzol e o molinete e até a lata de salsicha cheia de restos de miúdos de frango fedendo carniça pura numa pedra estanhando ao sol na boca da cachoeira. Se sobrar tempo para alguma pescaria.

Que caçada estranha!

Fico olhando a transformação do rosto dele só de calção. Um menino do homem sério, rígido lá da cidade. Entra lentamente nas águas, de certo ritual, cuidando, delicado, das águas do rio.

De repente, dada a breve travessia, senta-se numa pedra em que o jato mais encorpado de água cai sobre os seus ombros, de certo cansado. E agita os braços. E ri. E me chama.

Continuo descobrindo nele o menino que nunca vejo e que nunca brinca comigo.

Enfim, vou, de minha própria travessia. A água se amorna dentro do dia iluminado.

Não percebemos o tempo no meio desta caçada estranha.

O rosto dele tem um brilho diferente.

Ele é o maior caçador do mundo.

Voltamos com caça alguma no embornal. O sacio está todo na nossa alma de menino.

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