O Cântico dos cânticos de A última Missa, de Gilson José de Oliveira

a última missa

 

 Nilo da Silva Lima

Mestre em Teoria da Literatura (UFMG)

 

 

 

Há dias permaneço, pode-se dizer, nos umbrais de um templo que transcende o tempo e os territórios materiais que sustentariam esse templo no mundo, onde continuo ouvindo os ecos da A última Missa (2013), de Gilson José de Oliveira.

Um ritual, não profano, mas absolutamente humano. Conjunção perfeita de um texto que alinha, de única página, textos da tradição teológica católica, da tradição literária brasileira, da poética pessoal do autor, para narrar a travessia do menino Dito pelos conturbados anos 70 e 80.

Dito deixa o mundo da simplicidade da vida rural em Rio Casca, vai para o meio do mundo, contraditoriamente, isolado do mundo (ingressa nos Seminários em Mariana). Volta para o mundo como sacerdote, por mais de quinze anos. E, finalmente, devolve-se ao mundo para ser de novo apenas Dito, o menino que já nem existe, mas cuja memória lhe restitui o tempo e lhe restitui no tempo.

Uma trajetória de paixão. Há inúmeras marcas indeléveis nessa passagem histórica de Dito, nessas suas idas e vindas pelo mundo que para ele, tanto quanto para outros internos sempre se desdobram e se múltiplam como se de fato houvesse essa multiplicidade de mundos. Porém, certamente, em todas se distinguem a paixão. Dito não seria, não é, nem será sem a paixão.

A última Missa não traz nenhum lamento por estilhaços mal vividos, mal amados, mal resolvidos, por renúncias que mesmo não sendo mais reconhecidas por novas exigências que a vida lhe impõe, emperrariam a vida de Dito. Pelo contrário, trata-se de um belíssimo cântico à vida, à paixão pelo que abraça e realiza. Dramatiza-se em suas páginas, a coragem de alguém que por paixão assume os riscos da paixão. O amor e a paixão implicam sempre em riscos. E Dito não teme e não negligencia nenhum risco. A paz não é ausência de riscos pra ele. Não será sinônimo de conformismo. A aprendizagem faz rizoma com sua vida de interno, quando, pela palavra poética, enfrentara os tempos de longo silêncio imposto.

O livro se apresenta em fragmentos, todos com um título que pode aludir ou não ao que nele se diz, ou que não é para dizer. Contudo, há uma parte, talvez pudéssemos chamar de segunda parte, uma vez que vem até grafado em itálico, em que o autor alude à época que Dito, então, sacerdote, enfrenta a sua decisão de aceitar e de realizar concretamente outros sonhos, outros desejos que, embora se constituíssem impedimentos para o que a igreja, enquanto hierarquia exige dele, não anula, em absoluto a sua vocação para o serviço do povo de Deus. Povo que ainda clama por uma libertação (Dito é seduzido pela libertação) que não se conclui, que não é para ser concluída, mas para ser continuamente desejada, conquistada, construída, partilhada.

Certamente, é a parte mais poética, que não apenas cita, assemelha-se, evoca os cantares do Cântico dos Cânticos, mas inaugura, nas páginas das memórias de Dito, o seu cântico dos cânticos pessoal. Em que canta o amor, a paixão, não por um ser ou entidade alegórica, mas por aquela que poderá ser, que deseja que seja, que é, em seu pensamento, a sua amada.

Trata-se de uma poética riquíssima, de uma voz pertinente de quem sabe, mesmo confessando-se, ouvindo o Germano, o Viana e o Barbosinha, que um amor não anula outro amor. Que o Deus a quem se entregara, ama-o incondicionalmente e é infinitamente misericórdia. E o Germano, amigo de Seminário e de sacerdócio lhe diz, numa espécie de voz do Senhor dos Exércitos para esse Poeta – você consegue imaginar o padre Renato punindo alguém? Pois é, Dito, Deus é muito mais misericordioso do que o padre Renato.

A Última Missa é um livro de celebração da vida, de uma vida simples que leva ao altar a vida simples, o amor, a paixão, a poesia, o vinho, a alegria. Por isso a narrativa inicial do ingresso de Dito no Colégio Dom Helvécio, dos padres salesianos em Ponte Nova. Sua passagem pelo internato de Cachoeira do Campo. E, finalmente, sua vida nos Seminários de Mariana.

Todo percalço que os anos da ditadura militar trazem, tanto para o país quanto para os internatos que reproduziam muito das proibições, das censuras que inibiam, mas que também seduziam para algum tipo de enfrentamento histórico.

Poesia, humor, sangue, lágrimas e paixão inundam as páginas desse relato autoficcional, de uma riqueza inconteste de literatura.

 

Referência bibliográfica:

OLIVEIRA, Gilson José de. A última missa. Editora Graffcor: Ponte Nova, 2013.

 

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